Retenção de mercadorias no despacho: remédios possíveis
Limites para atuação do Fisco durante o despacho aduaneiro . . .
Não é novidade ao importador que a paralisação por prazo indeterminado e a retenção de mercadorias no despacho aduaneiro são sinais de graves problemas. Tais ocorrências acabam tendo, invariavelmente, o mesmo destino: farão com que o importador faça uma reclassificação indevida de suas mercadorias na NCM (Nomenclatura Comum do Mercosul) ou que tenha a retenção definitiva e perdimento da mercadoria.
No entanto, há limites para atuação do Fisco durante o despacho aduaneiro.
É prerrogativa da autoridade fiscal a verificação das mercadorias que entram no País para a segurança do consumo interno e também para o combate à evasão fiscal.
Porém a paralização do trâmite aduaneiro não pode ocorrer por tempo indefinido e não pode ser utilizada como instrumento de coação para que o importador pague multa e tributos que o fiscal entenda devidos, sobretudo nos casos mais ilógicos, como quando a cobrança é contrária ao determinado pela lei ou pela própria Receita em seus normativos, ferindo a segurança jurídica.
A liberação aduaneira somente será eficaz ao contribuinte se ocorrer rapidamente. Sobretudo porque não é a única forma que a Receita Federal tem de fiscalizar essas operações, pois todos os documentos e declarações ficam sob guarda da empresa e no próprio Siscomex, que tem o histórico de todas as ocorrências de importação, permitindo sua fiscalização a qualquer momento. Até mesmo a análise de amostras para perícia técnica pode ocorrer sem a necessidade de se barrar uma carga inteira.
Entretanto, interpretações da lei e das normas que deixam margem excessiva à atuação dos fiscais fazem com que os abusos não sejam raros.
O motivo consiste, em boa parte, na divergência quanto à classificação fiscal na Nomenclatura Comum do Mercosul (“NCM”) da mercadoria, que levam à alteração dos tributos recolhidos.
Embora o regulamento aduaneiro permita a verificação física e, no caso de realização de perícia, deixe margem ao fiscal para solicitá-la a seu próprio critério – o que por si merece uma análise caso a caso quanto sua pertinência-, a paralisação do despacho por tempo indefinido e a retenção de mercadorias para pagamento de tributos é indevida. Porém, ocorre até mesmo com mercadorias para as quais já há solução de consulta firmada sobre a classificação1 ou parecer do órgão anuente (como a ANVISA)2, ou seja, em situações nas quais o fiscal busca impor seu entendimento.
A medida inevitável nesses casos é recorrer ao Poder Judiciário.
Não há dúvidas de que é um desafio fazer com que um juiz determine a liberação de uma mercadoria por meio de uma decisão liminar, ou seja, sem que tenha havido a fase de produção de provas no processo3.
Mesmo assim, os abusos costumam ser cortados pela raiz em excelentes decisões, como no exemplo abaixo:
“(…) a negativa de seguimento do despacho aduaneiro, equivale ao ato administrativo de apreensão de bens, porquanto não importa o nome que se dê para a hipótese, as suas consequências é que prevalecem para a configuração da ilegalidade. Ademais, a paralisação dos atos de desembaraço aduaneiro deve ser adotada em situações excepcionais, a uma, porque interfere na órbita particular do contribuinte, inviabilizando, em certos casos, o exercício de suas atividades empresariais; a duas, porque não vislumbrando o fisco irregularidades a ensejar o perdimento dos bens, em face da importação autorizada, estará privando o contribuinte de seus bens, sem o devido processo legal.”, TRF3 SP 2005.61.00.029319-1.
O embasamento das decisões que liberam a mercadoria que demora demais na alfândega é sempre o mesmo: a atividade empresarial não pode ficar à mercê do Fisco, que possui outros meios para efetivar sua cobrança.
Para a liberação de mercadoria nos casos em que é exigida garantia para recolhimento da diferença de tributos, ainda não há um consenso dos julgadores, mas a jurisprudência STJ tem sido favorável aos contribuintes:
“O Fisco não pode utilizar-se da retenção de mercadoria importada como forma de impor o recebimento da diferença de tributo ou exigir caução para liberar a mercadoria. Aplicação analógica da Súmula 323 do STF“. STJ. REsp: 1.333.613⁄RS.
“Não se exige garantia para liberação de mercadoria importada, retida por conta de pretensão fiscal de reclassificação tarifária, com consequente cobrança de multa e diferença de tributo. Precedentes do STJ.
(…) Debate-se simples cobrança de diferença de crédito tributário. Não é o caso de possível pena de perdimento, que admitiria a obrigatoriedade da garantia, como já decidiu a Segunda Turma“. STJ. REsp 1.105.931/SC.
(…) Debate-se simples cobrança de diferença de crédito tributário. Não é o caso de possível pena de perdimento, que admitiria a obrigatoriedade da garantia, como já decidiu a Segunda Turma“. STJ. REsp 1.105.931/SC.
Entretanto, o número de ações judiciais que exigem liberação decorrente de atrasos e apreensões arbitrárias e ilegítimas é exponencialmente menor em relação ao de contribuintes que sofrem retenções indevidas na alfândega.
Uma das razões para isso é que os importadores temem represálias e mais atrasos nas futuras importações.
Em verdade, na análise prática de casos como esse temos presenciado justamente o oposto. A empresa que possui uma medida liminar para prosseguir com o despacho aduaneiro de determinada mercadoria acaba resolvendo um problema de organização interna da própria Receita e uma limitação funcional da autoridade alfandegária.
Ao reconhecer que a Receita tem condições diversas de fiscalização e cobrança em momento futuro, que não apenas a paralisação do despacho aduaneiro ou efetiva retenção das mercadorias, o juiz acaba por retirar daquele fiscal alfandegário o peso de liberar uma mercadoria sobre a qual tenha dúvidas sobre a tributação. O risco da responsabilização funcional individual contra o fiscal desaparece e ao mesmo tempo se deixa claro que a Receita pode legitimamente intimar o importador para discussão sobre as eventuais irregularidades cometidas nas importações.
É inegável o viés educativo dessas decisões, que devem nortear as relações na alfândega. Elas atenuam o comportamento do fiscal aduaneiro que sufoca o importador, pois afasta dele a crença de que se a fiscalização na barreira não ocorre, não haverá mais o controle dentro do País. A retenção no desembaraço pode até ser produtiva quando o intuito é barrar importações de produtos cuja venda é ilegal no País e outras práticas ilícitas, mas definitivamente não ocorre em relação ao recolhimento de impostos. Se o importador for mesmo devedor, a Receita irá cobrá-lo até mesmo com o direcionamento da dívida aos sócios, pois tem meios legais para isso.
A fluidez do desembaraço transfere a discussão administrativa a um momento posterior ao despacho aduaneiro e possibilita ao importador o verdadeiro contraditório, com a elaboração de uma defesa técnica que será analisada por um conjunto de julgadores, o que é um requisito legal e constitucional para qualquer autuação.
Assim, temos claro que a fiscalização das operações aduaneiras não pode ocorrer de forma diferente do que acontece em todas as demais situações. O importador não pode ser refém da fiscalização para pagar tributos e multas e nem mesmo para prestar garantias em situações que fogem à lógica da atuação aduaneira. Cabe ao poder judiciário balizar o poder da aduana e felizmente é nesse sentido que aponta a jurisprudência dos tribunais superiores.
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1 Desde a publicação da IN 1434/13, a Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência têm efeito vinculante no âmbito da RFB a todos os contribuintes, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento.
2 Obviamente a ANVISA não é o órgão responsável pela escolha da codificação NCM, mas sobretudo nas questões de medicamentos e cosméticos, o próprio registro no órgão anuente deve ser o norte para que o fiscal da Receita entenda qual é a mercadoria. O que se tem verificado são casos em que há até mesmo um laudo da ANVISA informado que a mercadoria é X e o fiscal da Receita afirma que é Y, alterando o NCM informado para o de maior tributação, o que é inadmissível. É nesse sentido que interpretamos a excelente e recente decisão do STJ no REsp 1.555.004 – SC.
3 No caso específico do Mandado de Segurança há vedação imposta pelo artigo 7º, § 2º, da lei 12.016/09 quanto ao deferimento da medida liminar que tenha por objeto “a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior”. No entanto tal vedação tem sido apreciada em conjunto com o artigo 5º, XXXV, da CF, que determina que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. Sendo a ação mandamental claro está que a prova deverá estar pré-constituída nos autos.
Carlos Henrique Ribeiro Pelliciari
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